Respirar pela paixão dos suicidas (ou: Pretentious bullshit)

Existe alguma citação, de alguém famoso, que diz que para viver é preciso abdicar de tudo aquilo que nos faz querer viver. Comer com moderação, amar mas não muito, evitar o abuso de drogas, recusar experiências muito perigosas. Quando se é jovem nada disso realmente importa, diz-se que o mundo nos pertence durante um breve suspiro. Seduz a noção de “viver a vida”. Lembro de O retrato de Dorian Gray. O personagem que dá título à obra é o exemplar perfeito de alguém que escolhe viver ao máximo do que é capaz. Começa com Basil fazendo uma pintura de Dorian e termina com Dorian matando o artista que lhe eternizou na tinta. Teve que fazê-lo, tornou-se uma pessoa horrível, das mais vis, precisava matar alguém como os amantes precisam concretizar seu amor. Teve, porém, enquanto viveu, “a vida e a infinita curiosidade (…). Mocidade eterna, infinita paixão, prazeres sutis e secretos, loucas alegrias e desenfreados prazeres.” Em troca, o peso da vergonha manchou seu retrato, que Dorian manteve escondido. Depois, com a mesma adaga que perfurou o amigo, apunhala seu próprio retrato, que é sua alma. Um grito. Um baque. Morre. 

Não sei bem se há para onde ir daqui. A questão está bem definida, não? Viver uma vida que maximize os prazeres imediatos leva à decomposição moral, inevitavelmente. A curto prazo, os frutos podem ser avermelhados como a maçã que Eva prova, deliciosos, mas depois se colhe a vergonha eterna. Desenvolver esta ideia foi o que motivou este ensaio. Agora parece pouco.

“Me faça sumir nos anéis de fumaça da minha mente/ Pelas embaçadas ruínas do tempo,/ (…) chegando à praia onde venta/ Bem longe dos braços contorcidos da dor alucinada/ Sim, dançar sob o céu diamante com uma mão livre que acena/ Em silhueta contra o mar, circundada pelas areias do circo/ Com toda a memória e o destino levados bem pro fundo das ondas/ Me deixe esquecer de hoje até amanhã.” A letra de Bob Dylan sempre permeia minhas ideias e não sei o que me faz crer que se encaixa aqui. O verso final, “me deixe esquecer de hoje até amanhã”, soa especialmente pertinente. A música, a letra, tem algo a ver com drogas, ou arte, estar entorpecido de forma geral, sobre encontrar algum espaço para respirar longe dos ares abafados da vida real, longe da “dor alucinada”. Noutro momento Dylan nota também que isto, que se persegue, é só uma “sombra”, não é tangível.

Uns versos famosos de Manuel Bandeira: “Amor – chama, e, depois, fumaça…/ Medita no que vais fazer/ O fumo vem, a chama passa…” No começo eu achava que o poema era sobre cautela. Descreve a delícia do amar, os prazeres, o gozo: “Gozo cruel, ventura escassa.” Alerta que se a paixão começa, e é boa, só pode acabar, sem outro caminho senão queimar o pobre que se deixa consumir pelo impulso. Depois de seguir o desejo há a ressaca. Por qualquer motivo, desatenção, nunca havia percebido que nos últimos versos do poema Bandeira se repete de um jeito diferente: “Tão triste que é! Mas tem de ser…/ Amor? – chama, e, depois, fumaça.” O tom é outro, há um chamado. “Amor?” Como quem fala com alguém querido, clamando por ele com o questionamento, como dizendo “Amor?, onde você está? Vem cá”. E enfim continuasse: “chama, depois fumaça, tudo bem, vale a pena”, acho que ele deixa que fumaça seja um verbo em lugar de substantivo.

Quando assisto Sociedade dos poetas mortos, costumo pensar no professor John Keating como a simbiose perfeita do pragmatismo com o idealismo, do estoico com o hedônico. Talvez pendendo mais para o lado de cá, já que acaba tropeçando e sendo demitido por subestimar sua influência, mas não importa. O que ele ensina é sentir o prazer das coisas, da vida, aproveitá-la. Os dois personagens mais interessantes são, de longe, os que levam mais adiante a proposta do professor, os que, em lugar de encontrarem nos seus sonhos e desejos um alívio para a vida, encontram nas suas realidades limitações ao quimérico, e não se satisfazem. São extravagantes, vão longe demais. Charlie, é o rebelde sagaz, não leva nada a sério senão o carpe diem. Tem uma cena em que lê Thoreau e se sintetiza: “Fui para os bosques viver de livre vontade. Para sugar todo o tutano da vida. Para aniquilar tudo o que não era vida e para, quando morrer, não descobrir que não vivi!” Charlie acaba expulso da escola, os motivos são nobres, mas não importam. O outro de quem falo é Neil, o suicida. Sonha em ser ator, mas o pai não o deixa, é estrito. Para Neil, claro, o clímax, o ponto alto do filme, a cena principal, que justifica tudo. Engatilha o revólver, ouvimos o estouro. Bam! Bandeira tem um poema, sobre como queria que fosse seu último poema: “Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume/ A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos/ A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.” É como se todos eles convergissem para a morte.

Que não se pense que estou advogando pelo suicídio com estas palavras. Digo — não estou advogando coisa nenhuma, quem quiser que faça o que achar melhor, que cada um estrague a própria vida como queira. Estou romantizando essas ideias tanto quanto penso que merecem ser romantizadas, só que é bom ter em mente que tudo aqui é sombra inefável, que não se pode — ou talvez não se deva — tocar senão em ideia. Tocar a sombra é como tocar o sol, fazer como Ícaro, que ganha asas do seu pai, que lhe recomenda que fique longe do sol e longe do mar, ambos impostores. Teimoso, não escuta, voa perto demais do primeiro; as asas derretem, ele cai. Novamente a morte. Mas, sabe, mesmo que ninguém tenha visto, dizem que Ícaro naquele seu último instante brilhou tanto que a silhueta do sol quase podia ser alcançada lá de baixo.

O arco-íris é um pronome possessivo

Li Autobiografia do Vermelho há pouco. É sobre um menino vermelho que vê tudo vermelho, e tem asas vermelhas, e é um monstro. Geryon é o nome dele. É uma tradução-adaptação de um velho mito grego. O elo entre cor e sentido é um negócio interessante que deixa a gente pensativo. Aparentemente, Rimbaud tem um poema em que ele dá cor às letras. Nunca li. Tem uma frase dele que é assim: Je est un autre. Eu é um outro. Porque pra ser um outro o verbo não poderia estar na primeira pessoa, “eu sou um outro” não é certo. Mas pra mim o interessante mesmo é ele usar “um”, sabe? Lembro de uns versos, de John Lennon: I am he / as you are he / as you are me. Acho que ele se equivocou. Se não, a gente teria como entender as cores; não entendemos. Só que a letra é pra ser absurda mesmo. E, além do mais, tem coisa que não faz sentido mas tanto não faz que acaba fazendo.

Vez ou outra tento imaginar no que é que essas pessoas pensam quando escrevem o que escreveram. Já ouvi falar que João Cabral escrevia um verso e o guardava numa gaveta. Meses depois ele ia lá, juntava todos e passava uma eternidade encaixando os pedacinhos. Como em um quebra-cabeça. “E o frenesi do poeta?” — pergunta entre os dentes um tolo. A resposta é que vomitar poemas está fora de moda há séculos. Vai ver, amigo, poesia é a coisa mais calculada do mundo. Pobre da matemática.

Geryon é um monstro originalmente, mas no livro ele parece mais um herói. Ele ama o verdadeiro herói que o vê como amarelo. Acontece que mesmo sem entender as cores a gente sabe que não tem cabimento ver amarelo dentro de alguém vermelho. É cruel. “Poderia ser os dois, não?” Se fosse vermelho e amarelo ele seria laranja. Não pode sê-lo. Laranja é João Cabral.

Acessórios importantes são os óculos

Ontem fui ao médico, ao oftalmologista. Disse-me que terei de usar óculos – um tal de astigmatismo me aflige. Sempre precisei usar óculos; não devido à enfermidade, esta nunca notei, mas sempre os achei esteticamente agradáveis. Sempre penso que rostos precisam de algum tipo de proteção, talvez decoração, para não se exporem demais aos rostos dos outros. No meu caso, tenho a tendência de deixar os cabelos crescerem e cobrirem um pouco de minha testa e meus ouvidos. A higiene exige que eu corte vez ou outra os cabelos; e o dinheiro exige que eu os deixe bem curtos. Não tem momento em que me sinta mais nu.

O grau é baixo, 1 em um olho, menos ainda no outro. Como já disse, nunca notei o astigmatismo. Acontece que, quando pequeno, nas vezes que tinha que ler livros do colégio, não o fazia. Sempre fingi ler. Minha mãe notou e também uma professora que tive, ambas faziam alusões à coisa -“tem aluno que senta uma hora com o livro na frente e não lê, só finge.” Diziam isto com um olhar oblíquo dirigido a mim, ao que eu respondia com a maior desfaçatez, desfaçatez de criança. Vai ver vêm daí os cabelos longos.

Recentemente, tenho lido mais. Não o suficiente para notar o grau pequenino, mas leio um pouco mais. Assim como rostos precisam de máscaras — penso que é mais bonito falar máscara, dá um sentido mais poético à coisa do que proteção –, precisam também de uma expressões extras, as quais penso serem obtíveis através dos livros. Os de ficção, mais especificamente. Enfim, leio mais, mas não o suficiente. Não sei se ainda hoje poderia enganar minha sagaz professora. Minha mãe tem o prejuízo de ser minha mãe; creio que seria mais fácil no caso dela.

Os óculos. Pois é, estou desesperado. Ficarei mais bonito, pelo menos olhando-me ao espelho, mas incomoda-me o fato de nunca ter notado a falta de óculos. O que mais não notamos? Quando olhamos as belas rosáceas de igrejas antigas e sua arquitetura vemos o que alí está ou atendemos aos caprichos da mente? São perguntas extritamente retóricas, claro que não há resposta. Fingimos que todos olhamos as mesmas rosáceas, a mesma mármore, os mesmos rostos.

Figura democrática são os óculos. Havemos de ser justos com eles – não importa se o que entendemos de ótica é ou não correto, se o que vemos é ou não verdadeiro. Com os óculos, ou todos vêem corretamente, ou ficam todos cegos de vez. Mas cegos juntos, sem privilégio para os que mais enxergam que outros. Os sabidos, que aos olhos nada foge, são postos no mesmo canto dos estúpidos.

Mas tem também o colírio, o colírio, não! Absolutamente me recuso a aceitar que aquela gotinha miserável tenha alguma utilidade. Onde já se viu: colocar um negócio daqueles no olho para que? Para combater o olho seco? Isto não se corrige com colírio, afirmo aqui que não! Quem quiser que me processe, mas defenderei perante o júri: o olho seco não tem solução. Contra ele inventaram o teatro, a música, a literatura e a poesia. Dão jeito para alguns; mas o colírio, ah!, esse, não.

Fui eu quem fiz a médica me receitar o diabinho do colírio. Estava eu no consultório relaxado, ainda antes de receber a derradeira recomendação, explicando meus problemas à doutora. -“Tenho uma secura nos olhos, especialmente à noite. Se fecho os olhos, a irritação melhora um pouco, mas não dá para passar a noite toda assim.” Ela concordou com a cabeça, mas sem comentário. Partimos ao exame. Fiz tudo o que ela mandou. Terminado o processo, foi aí que ela disse. –“Você tem um grau bem pequeno, mas recomendo que use óculos.” -“Por ser pequeno, preciso mesmo?” -“Eu recomendo, você não tem nada a perder.” Concordei.

Até este ponto, muito bem, meu prazer estético logo estaria satisfeito. Foi quando começou o pesadelo. –“E o olho seco? o que faço?” Fosse mais inteligente, tivesse lido mais, talvez soubesse que não deveria ter trazido novamente à tona a questao. Mas, como disse, não leio o suficiente. –“Bom, eu vou lhe passar um colírio, então… você usa ele três vezes por dia.” Lembro pouco depois daí. Fui para casa.

Para falar a verdade, comprei o colírio no caminho de volta. Sabe, é que a gente tenta de tudo. Não menti quando disse que defenderia minha tese sob juramento; digo mais, seria causa ganha. Só que… na prática a teoria é outra.

Eu dizia como deixava meus cabelos crescerem. Não lembro bem quando a prática começou, nem como racionalizei a coisa. Hoje sei que foi a falta dos óculos, mas na época ainda não. Certa vez, minha mãe me forçou a cortar os cabelos, estavam grandes demais, dizia. Não mentia. Mais tarde soube que a iniciativa não partira dela, mas de uma professora minha, diferente da já mencionada.

Meus cabelos eram cortados. Eram cortados à maneira que Natalie Portman tem a cabeça raspado em V de Vingança. Conhecesse a cena na época, sei que me reconheceria alí. Chorei. Era um choro de ódio. Meus cabelos eram meus óculos. O mundo ficava mais belo, mais nítido, e tenho astigmatismo. Durante o corte inteiro aquela mulher — lembro nitidamente de seu rosto, tinha cabelos como de antagonistas de novela — tinha a mesma expressão que tem um assassino quando goza em ver sua vítima morrendo em agonia. Ela não sorria, o que era pior. Eu não podia acusá-la de dolo sem que sorrisse. Ela sabia disso. Mas, se a boca era astuta, seus olhos a entregavam. Mesmo sem cabelos, óculos e sendo astigmático enxergava por trás daquele disfarce.

Daí em diante, sempre que me dizem que meus cabelos estão longos, faço questão de deixar que cresçam um pouco mais. É uma ferramenta de defesa, pelo menos acho que é. O oposto também acontece. Já tive os cabelos elogiados. Sempre que isto acontece trato de cortá-los. Nu ou não, corto bem curtos. Opto geralmente por profissionais homens. O rosto da vilã aparece para mim no rosto de toda mulher do ramo. Deve ser trauma, ou sei lá o que. Já ia esquecendo do colírio: não funcionou. Meu olhos continuam secos à noite.

O passado e o Youtube

Um dia desses fiz uma visita ao Youtube para ouvir uma música dessas antigas. O vídeo acabou. Fui aos comentários, já ciente do tipo de comentário que encontraria; nunca resisto. “Isto sim era música”, “nesse tempo é que se entendia o que era música de verdade”. Os comentários são sempre iguais, seja em canções dos anos 60 ou 70, de rock ou bossa nova.

Entendo o apelo do passado. Concordemos que antes de tudo ganha pontos por não ser presente. É uma ideia apenas: não precisa obedecer às regras da realidade se quem a concebe assim deseja. Depois, as representações românticas do passado no mundo da arte nos são inescapáveis, não são assim tão culpados os que sonham com o passado que nunca houve. 

Há qualquer coisa que atrai em obras que falam de outros tempos e outros lugares, mesmo que elas não tenham nenhuma pretensão romântica. Fazer parte de uma greve de mineradores franceses — logo franceses! — , faísca de uma revolução socialista, ao lado de Etienne tem lá algo de bonito ou heroico. Com um momento de reflexão, claro que não tem nada de desejável em fazer parte de um romance de Zola, mas nestes momentos de divagação a lógica nunca encontra respaldo.

Ah! A ironia — não tão sutil — em comentários fúnebres a elevar a música antiga quando estas falam justamente em rasgar os laços com o passado. É sempre mais fácil falar bem do já estabelecido como grandioso. Imaginem só, achar um Castro Alves no mar de poemas produzidos hoje em dia, falando apenas em Brasil. Ou então achar um Tom Jobim, que seja. É difícil. Com sorte serão descobertos depois da morte, ou depois ainda.

A dificuldade não está em ler e escutar tudo o que há. Isto seria fácil, um maluco qualquer o faria. Laborioso é estabelecer os critérios que fazem de um clássico um clássico. Encher os pulmões e bradar: -este dormirá ao lado dos Grandes. Ninguém no mundo poderia o fazer. Ninguém. Talvez estes tais critérios nem existam, quem sabe?

Apesar de tudo, há de se reconhecer nos antigos um atalho em relação aos modernos. Qualquer coisa que se deseje tirar de uma obra artística, o caminho mais rápido provavelmente está nos clássicos. Mais pessoas tidas como inteligentes leram e aprovaram os antigos. Aí está a razão única. Claro que se pode ignorar 99% de tudo quanto dizem, mas o mesmo pode ser feito com o que falam sobre os contemporâneos. O ideal seria digerir tudo aquilo que é arte e decidir por si o que é bom. Diante da impossibilidade disto, o melhor é que o pouco que se tem tempo de ouvir, ler e assistir seja escolhido criteriosamente.

A diferença entre admitir que os clássicos têm algum valor e as sabujices comentadas no Youtube está no reconhecimento do moderno como clássico que ainda não teve tempo de ser devidamente colhido.

Quanto ao uso de nosso tempo de maneira criteriosa, retifico-me: perder tempo é ser eficiente – assim ensinam os antigos.

Papo de bar

Lembro de quando ainda não cursava Jornalismo. Estava eu, aos meus 19 anos, refletindo — tanto quanto é capaz um jovem de 19 anos — sobre o que eu faria da vida. Faria da vida. Sempre odiei este termo: “fazer da vida”.

Primeiro, porque é algo tão abstrato que invariavelmente minha cabeça começava a doer sempre que essas palavras eram pronunciadas. Segundo, porque eu não tinha ideia de qual era a resposta.

Com o tempo decidi responder a verdade. Sempre dizia

  • Não sei, mas procuro algo que me excite intelectualmente –  talvez tenha sido menos eloquente, a memória me falha.

Assim respondi durante muito tempo. Estava eu num bar qualquer com umas pessoas quaisquer, quando me dirigiram a medíocre pergunta. Preparado, repeti o bordão. Foi quando uma colega prontamente pontuou:

  • Mas tem que pensar também no mercado, no dinheiro, né? – Ela falou assim mesmo, juro. 

Eu tentaria descrever minha ira naquele momento, se não soubesse de antemão que falharia. Falharia sem falta. Por pouco não levantei da mesa e lhe xinguei com todos os palavrões que me vieram à mente. E todos os que sabia me vieram à mente ao mesmo tempo. Tive mais pudor que ela. Sorri, balancei a cabeça, concordei. E o fiz sinceramente.

Voltei para casa arrasado. Não estou tentando dizer que ela estava errada. Mas precisava mesmo falar aquilo? Não bastava ter aquela sabedoria para si? Claro que não. Pois eu acho que certas coisas não podem, não devem ser ditas em voz alta. No caminho de casa lembrei e relembrei o ocorrido. Me veio a ideia:

  • Deveria ter levantado e citado Fernando Pessoa: “Tratem da fama e do comer / Que amanhã é dos loucos de hoje”. 

Mas não disse nada. Fui covarde. Como pude não dizer nada? Foi um atentado. Não me refiro a ela, falo do meu mutismo. Atentado não a mim; mas também a mim, aos românticos, aos poetas, à Humanidade!

Quando deitei no travesseiro, acho que voltei a concordar com a vilã, do mesmo jeito que na mesa do bar. Hoje assisti Whiplash. Neiman é o protagonista. Um jovem baterista de 19 anos que escolhe “morrer bêbado aos 34 anos, sozinho”. Seria o preço da Grandeza ou qualquer coisa assim, sei lá. Só hoje é que vim me lembrar dessa história. Quem sabe o que isto quer dizer?

Concordo com o meu eu de antes. Não com o que condescendeu com aquele nefasto comentário antes de dormir. Concordo com o que teve vontade de levantar e declamar Fernando Pessoa. E daí se ela estava certa? E daí que vou morrer? Talvez esquecido por todos os amigos como a pessoa que fui, mas lembrado por todos os seres vivos e que ainda irão nascer como Escritor, Poeta, Artista. A tal Grandeza…

O que mais me dói, e escrevo sem vergonha de cair em contradição, é saber que isto é impossível. Não se realizará, por um problema matemático. Ou melhor, mesmo que se realize, não se realizará para mim. Pois ou falharei, como todos os outros – coisa provável. Ou então, pior, eu conseguirei. Quer dizer, não eu, pois estarei morto, e o que importa ao cadáver o modelo do seu caixão? Pois é, não conseguirei mesmo que consiga. Não eu. Não Neiman. Não Pessoa. Ninguém. Coisa engraçada.

Carta de um autor desconhecido

Meu caro amigo, vim lhe trazer novidades. Li há muito tempo atrás uma carta cujo remetente desconheço. O autor tentava fazer algo como o que agora estou a fazer. Não era uma carta muito bem escrita, só cito ela pois me recordo deste autor ter falado umas bobagens sobre Samba, Rock, futebol e choro. Então quero começar esta carta afirmando que, felizmente, hoje já não se toca mais Rock, nem Samba e o choro é raridade.

Evoluímos muito! Tenho orgulho de falar isto. Nossa sociedade já não é mais como antes. Temos uma elite incrível. Falo em termos genéricos de propósito, pois toda a nossa elite é digna de elogio. Elogio do mais alto nível! Nossos intelectuais, por exemplo, são verdadeiros heróis. Foram estes que nos ajudaram a acabar com toda a música boba de outrora. Samba e Rock, como eu já disse, não são mais bem vindos aqui. Agora só tocamos os clássicos de Wagner & cia.

Na política, estamos caminhando na direção certa. Nosso líderes conseguiram comprar um bocado de doses de um remédio que cura uma doença nova – desculpe, me adianto. Acontece que recentemente surgiu esse tal vírus – diz-se que surgiu naturalmente, mas, cá entre nós, acho que a história não é bem essa. É coisa boba, só menciono o fato para adicionar contexto.

Eu falava da cura. Pois é. Somos agora o país mais bem equipado para lidar com a pandemia – esqueci de dizer, o vírus acabou se espalhando pelo mundo, mas está tudo sob controle. Nosso líder fez o possível e o impossível para nos ajudar. No fim das contas, apesar de previsões extravagantes, poucos foram os falecidos. Só não dou números exatos pois não os tenho comigo no momento, e, como você sabe, não gosto de ser impreciso.

Há pouco tempo ocorreu uma coisa que acho válida mencionar, mais pelo fator simbólico. Um grupo de pessoas, das mais honradas, diga-se, conseguiram falir uma das maiores empresas do mundo. Na verdade, a empresa quase faliu, ainda tem um ou outro consumidor. Mas, voltando, o motivo foi dos mais nobres. Esta tal empresa pensou que seria uma boa ideia colocar uma mulher numa campanha de dia dos pais.

A situação é um pouco complicado, tentarei dar o panorama geral. Há por aí uma cirurgia que faz mulheres virarem homens e também o contrário – ou assim dizem. Esta mulher fez isto e agora fala que é um homem. Parece até que essa pessoa tem um família e filho, pelo que sei é até bom parente; mas o ponto não é este. O problema, como sei que você já imagina, são os seus genes. Afinal, como uma mulher de genes xy, seria impossível para ela mudá-los. Assim, deu-se o boicote.

Já me estendi demais, porém lhe contarei mais um caso para não ser acusado de parcialidade. Apesar da nossa evolução, tragédias ainda acontecem. Falo isso com a maior dor no coração, acredite. Há pouco, uma menina estava grávida e lhe foi permitido que abortasse aquele ser dentro dela. Maior comoção nacional. Sim, deixamos que um assassinato acontecesse, e sem nenhum tipo de punição à menina.

Peço perdão por ter de adicionar algo tão sombrio numa carta dessas, preferiria omitir algo assim, mas a verdade deve ser dita por inteira, lembro-me que algum poeta falou isto. 

Sinceramente, quase choro só de pensar neste homicídio. Não tive nem coragem de me aventurar a ler todas as circunstâncias do crime, pois minha alma não aguentou continuar lendo sobre o caso.

É isso. Devo terminar por aqui, minha emoção me impede de alongar esta carta. Só queria lhe transmitir a situação atual das coisas. Apesar desta última notícia, devo dizer que a coisa aqui não está preta de jeito nenhum, como disse aquele remetente desconhecido. Se me permite o trocadilho, a coisa está branquíssima! Ah, sim, quase esqueço do futebol. Me furtei de falar sobre isto no início, mas, não se preocupe, aqui ainda jogamos futebol.

Com muito carinho, do seu querido amigo.

Bolsonaro, segundo Bolsonaro

É uma coisa ser chamado por esquerdistas e liberais de fascistóide; não passa de elogio vindo da boca de comunistas – sim, pois todos aqueles à esquerda de Bolsonaro o são. Também é igualmente irrelevante, para a elite intelectual bolsonarista, quando o jornal mais influente do mundo reporta sobre as constantes ameaças de golpe dos aliados do Presidente, afinal, não é como se isso, mais que tudo, afastasse investimentos do país. Mas, e quando até mesmo sob seus próprios critérios, o Presidente da República falha?

Disse Bolsonaro, durante a campanha:

“O que vem sendo feito ao longo dos últimos anos? O presidente indica os seus Ministros de acordo com interesses político-partidários, tem tudo para não dar certo. Qual a nossa proposta? É indicar as pessoas certas para os Ministérios certos. Por isso nós não integramos o Centrão, tampouco estamos na esquerda de sempre, vamos escalar as pessoas certas.”

Um ano e seis meses depois, Moro, o Atlas da justiça, representante do que há de mais técnico no governo, dentro dos critérios dos bolsonaristas, demitiu-se, segundo ele, devido à tentativa do PR de interferir na Polícia Federal.

Luiz Henrique Mandetta, longe de ser perfeito, é um médico, equipado para liderar o Ministério da Saúde, mas foi demitido durante a pandemia por não ser subordinado o suficiente; Nelson Teich, substituto do anterior, esse sim, mais subordinado ao chefe, tinha como defeito, quem diria, ser médico, o que o impediu de continuar no Ministério, haja vista a insistência do Presidente em promover uma droga cuja eficiência não é provada.

Para se manter no poder, diante da possibilidade de Impeachment, Bolsonaro também tratou de ir ao fundo do Centrão comprar apoio em troca de cargos dentro da máquina estatal.

Nos ministérios, Fábio Faria foi indicado recentemente à liderança do Ministério das Comunicações. Como Ministro da Saúde, no lugar dos antecessores, está Eduardo Pazuello, cujo mérito está em sua “experiência em logística”. Justo, não fosse esta apenas uma desculpa para colocar outro Militar no governo.

Novamente: as práticas de Jair Bolsonaro não foram criminalizadas por ninguém além dele mesmo. Há uma dissidência entre o que falava o Bolsonaro candidato e o que faz o Presidente, mais:

“Então qualquer presidente que porventura distribua ministério, estatais, ou diretorias de banco para conseguir apoio dentro do parlamento, ele está infringindo o art. 85 do inciso dois da constituição. Qualquer um pode, se eu por exemplo, apresento no ministério para um partido com objetivo de comprar voto, qualquer um pode então me questionar que eu estou interferindo no livre exercício do Poder Legislativo”

Também é de autoria dele a frase acima. Parece que à máxima “à mulher de Cesar não basta ser honesta, tem de parecer honesta”, Bolsonaro prontamente responde: “à mulher de Cesar não é necessário ser honesta nem parecer honesta, basta dizer que é honesta”.

Lula: um constante lembrete da razão de existir um Bolsonaro

É natural e razoável a crítica constante a que é submetido o atual presidente da república; seria, pelo contrário, motivo de preocupação se as instituições ficassem caladas e inertes diante das constantes tentativas de agressão ao Estado de Direito de autoria do PR. Mas ainda não é tempo para lágrimas. Ainda há o que ser feito a fim de evitar a barbárie. Um sábio diria, imagino eu, que é tempo de todos aqueles que concordam sobre o básico para convivência em sociedade, isso é, a tolerância, o respeito às regras do jogo – democracia -, juntarem-se não para chegar ao poder, mas para impedir que Bolsonaro o faça novamente em 2022. Eis que entra Lula, a todos deixando claro que apenas se preocupa com seu projeto de poder, tal qual Bolsonaro.

Terça feira, 19/05, Lula, em entrevista à Carta Capital, disse: 

“Quando eu vejo alguns discursos dessas pessoas, falando, quando eu vejo, sabe, essas pessoas acharem bonito que tem que vender tudo que é público, que o público não presta nada… Ainda bem que a natureza, que a natureza, contra a vontade da humanidade, criou esse monstro chamado coronavírus. Porque esse monstro está permitindo que os cegos enxerguem, que os cegos comecem a enxergar, que apenas o Estado é capaz de dar solução a determinadas crises”.

Por óbvio, Lula pediu desculpas depois, o que pouco importa. Uma frase proferida por um civil, bastante influente, é verdade, mas ainda um civil, é pouco relevante. Se ele, como Bolsonaro, ocupasse a cadeira de presidente, seria mais digno de crítica. Como não é o caso, que Lula fale o que quiser, contanto que dentro dos limites da lei.

Mais interessante de discutir é o conteúdo da frase, o que ela representa, e não a moralidade de quem a pronunciou. Em resumo, disse Lula, que a pandemia é uma coisa boa pois prova que o Estado é necessário e que privatizações são ruins. É bem verdade que a pandemia expõe alguns problemas de teses que defendem a inexistência do Estado, ou que defendem a privatização da saúde. Ainda assim, não é uma troca justificável. 

Ora, não é justamente para poupar vidas que se quer expor o problema dessas teses? O objetivo de toda teoria política e econômica é, no fim das contas, preservar a vida e o bem estar das pessoas.

Se não, pois então podemos justificar as mortes na guilhotina, consequência da revolução francesa, bem como a tirania de Napoleão que se seguiu, bem como o fim do isolamento social para que a economia não pare.

Apesar de não ser relevante como fato político, a frase de Lula é relevante como fato histórico. Podemos acreditar que foi apenas um deslize. Também podemos, ao contrário, analisar a frase sob o contexto de toda a história do PT no poder, de Lula no poder; o PT tem, sim, culpa de Bolsonaro existir. 

Ninguém há de dizer que em 2018 Haddad tinha chances maiores de vitória contra Bolsonaro em um segundo turno, no lugar de Ciro, por exemplo. Falo apenas da melhor estratégia de vitória se o PT tinha como objetivo impedir que Bolsonaro fosse eleito, a fim de preservar a democracia. A mim pouco me importa um como outro. Apenas com esse fato, é evidente que o PT tem antes em mente seu projeto de poder do que o melhor para o Brasil. Assim sempre foi, assim sempre será.

Que fique claro, jamais diria que deve ser de outra forma, afinal, natural é que todo partido pense sempre no que é melhor para si, como também cada indivíduo pensa no melhor para si e para os seus. O que em lugar disso falo é que o melhor para Lula, para o PT, não é o melhor para o Brasil, de tal sorte que em busca dos seus fins foram responsáveis, parcialmente, sejamos justos, pela existência da maior ameaça à democracia desde seu nascimento.

Enfim, que não se pense que é equivalente o que diz Lula ao que diz Bolsonaro. Tanto em conteúdo como em responsabilidade. O Presidente da República tem de ter mais responsabilidade e tem de pensar mais no que irá dizer que qualquer outro cidadão. É um dos fardos do cargo. Ele responde não somente por si, mas, enquanto ocupa a presidência, responde também por todos os brasileiros. Dito isto, Lula é tão suscetível a críticas por falar bobagens como qualquer outro cidadão: que os interessados nisso o façam.

À oposição: talvez não seja uma boa ideia ter Lula como aliado. É verdade que ele tem uma força política inigualável, mas é também verdade tudo o que foi dito aqui. Em vez disso, apostar em alguém que não necessite da polarização estúpida que há hoje no país para ser eleito é um caminho melhor, apesar de mais difícil. Até lá, espera-se que o PT e Lula não colaborem novamente para a criação de outro Bolsonaro, um já basta.

Pronunciamento de Sérgio Moro

Devido à troca do comando da PF, Sérgio Moro falou hoje, 24 de abril, em rede nacional. Em um pronunciamento extenso, cansativo e demagógico, o ex-juiz confirmou sua demissão. Fez uma série de afirmações que, postas no contexto de sua biografia, não passam de delirantes. Os 35 minutos de fala foram mais uma disputa, contra Bolsonaro, pela narrativa vigente no imaginário popular do que qualquer outra coisa.

O discurso, além de afirmar sua saída do executivo, serviu para: listar uma série de conquistas durante o tempo em que ficou no cargo; posicionar-se como virtuoso lutador contra a corrupção, que tem sempre como escudo a democracia e a lei, lembrando sempre ao povo seu papel na Lava Jato; pintar Bolsonaro como pior que o PT no fator luta contra a corrupção, por interferir na autonomia da PF.

Por último, a já comum demonização da política, mas, dessa vez, colocando Bolsonaro no mesmo balaio dos demais homens públicos, pois este fez, segundo Moro, uma indicação política após a exoneração de Valeixo, o que é imperdoável aos olhos da verdadeira justiça – aos olhos de Moro.

Conquistas

Justíssimo! Todas seriam posições razoáveis, não fossem os fatos. A começar pelas conquistas como Ministro: o pacote anticrime, enviado ao Congresso com a assinatura de Moro, teve como principal ponto a excludente de ilicitude, retirada do texto, aquela que permite o perdão ao “excesso doloso” em casos de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.  Também sem aval do ex-ministro, foi adicionada a figura do juiz de garantias ao pacote. Ao ser aprovado, o pacote já não era mais do Ministro, mas sim do Congresso.

Também os dados de violência apresentados nada têm de mérito da atual gestão. Os dados da diminuição de homicídios foram apresentados apenas 9 meses após o início do atual governo. Sérgio Moro disse que a diminuição vem acontecendo desde 2018, mas sempre puxando para si uma parte da glória. Naturalmente, esqueceu de citar quais medidas foram tomadas pelo próprio para que uma melhora tão considerável tivesse resultados tão rápidos. Quem sabe em uma entrevista coletiva alguém lhe pergunte que soluções foram essas; afinal, todos os países do mundo têm muito a aprender com tamanha eficiência.

Não apresentou porque não existem. Inovações dos Estados e medidas do governo Temer tiveram um impacto na diminuição da taxa de homicídios em 2018 e 2019. A comparação com 2017 é também um possível fator, pois ocorreram disputas de facções pelo controle do tráfico de droga no país, o que teve como consequência o aumento de homicídios no ano.

Rule of Law e autonomia

Outro ponto foi a paixão repentina de Sérgio Moro pela “rule of law”. Não é preciso ir tão longe para demonstrar que Moro e a lei não são muito íntimos. O caminho mais fácil é pelos vazamentos feitos por The Intercept. Segundo o site, que nunca foi desmentido pelo ex-ministro, uma série de diálogos promíscuos aconteceram entre Deltan Dallagnol e Sérgio Moro durante a operação Lava Jato. O artigo 254 do código de processo penal teria então sido infringido, além do código de ética da magistratura, claro, apenas na eventualidade dos diálogos serem verdadeiros.

Outro caso, que toca a autonomia da PF e o amor inesperado que Moro tem pela lei, ocorreu também durante a Vaza Jato. O ex-ministro chegou a dizer que as provas colhidas pela polícia, na prisão dos hackers, seriam destruídas. A PF pronunciou-se contra Moro, por ser uma decisão fora da competência do cargo dele; o Ministro do STF Fux determinou a preservação das provas posteriormente.

Aqui não vos fala um legalista, mas tão pouco alguém que pretende ser um. O problema creio que surge no momento em que uma figura pública tenta se vender como alguém que preza pela “rule of law” quando a realidade, e que fique claro, a realidade apenas, demonstra que existe, na melhor das hipóteses, um caso de dissonância cognitiva evidente.

A Política

Para alguém que se põe como amante da Democracia, Moro bate como um verdadeiro “bolsonarista raiz” na tecla de indicação política. Primeiramente, indicações políticas são parte do nosso sistema democrático. O governo de coalizão precisa de negociação, desde que tudo seja feito dentro dos limites legais. Mas não veem assim as coisas os seguidores de Moro, que, a propósito, assemelham-se muito aos de Bolsonaro e até aos de Lula. Do segundo pela visão de um homem sem defeitos e cujos fins são dignos, apesar dos meios; do primeiro pelos mesmos motivos e também o ódio à política. Então, sendo a concessão a políticos um pecado dentro desse paradigma morista ou lavajatista, o ex-ministro mostrou-se mais que ciente da existência desses indivíduos em seu pronunciamento, com constantes acenos.

Dito isto, a mudança na PF pode sim ter algo de ilícito, por, segundo Sergio Moro, se tratar de uma tentativa de quebra da autonomia. É uma acusação grave e cabe às autoridades investigar; antes disto provado, nada fora da alçada do Presidente e do jogo político ocorreu. A reação e a tentativa de jogar o povo contra um fato como este, quando tantos outros podem ser criticados tão duramente, vem do berço lavajatista de ódio à política, que levou Bolsonaro à cadeira que ocupa.

Bolsonaro navegou na onda lavajatista até ela se virar contra ele, um modelo a se evitar ao próximo candidato a timoneiro. Se não era possível antes, hoje já se pode falar da candidatura de Sérgio Moro em 2022. Porém, “cortem-lhes as cabeças” é uma bandeira pesada; a história mostra que, eventualmente, o carrasco passa a sentenciado. Se a revolução francesa não é prova, que seja prova Bolsonaro. Esse espírito da Lava Jato, que permeia o imaginário coletivo como tudo que há de virtuoso, não é nem benéfico ao país nem a quem o difunde. Mas que o ex-ministro aprenda como Bolsonaro; não venho aqui dar conselhos.

Sim, seria excelente se Sérgio Moro realmente fosse um defensor da Democracia, das leis e dos direitos individuais, e que veio à terra defender o justo. Infelizmente, não passa de um Ministro cuja fala não condiz com as ações e cujas ações não conduzem o país a um bom caminho.

Mais ciência, menos política barata

Jair Bolsonaro fez um pronunciamento no dia 08 de abril que tinha dois principais objetivos: vender sua imagem como uma espécie de Galileu da cloroquina e culpar de antemão a futura crise econômica nos governadores. Qualquer um que afirme que é uma estratégia moralmente dúbia deve estar preparado para ser acusado de eufemismo. Mas não vou me ater à moralidade do Presidente.

Minha pretensão aqui é mais séria; a sugestão da implementação de um remédio no combate a uma pandemia exige seriedade, mesmo quando vem do Presidente. A Covid-19 já matou 100 mil pessoas até a data que escrevo. A dificuldade do problema tende a atrair sugestões simplistas. Esforçarei-me em também não cair na armadilha.

Primeiro, a fim de esclarecimento: pesquisas relacionadas à cloroquina estão sendo feitas em todo o mundo, não existe tentativa de esconder o remédio. O que existe, de fato, é o exercício do devido procedimento científico.

É absoluta a necessidade de pesquisas científicas; a cloroquina parece, sim, ter alguma eficácia contra a síndrome respiratória causada pela Covid-19, mas não é sabido a dosagem ideal, os efeitos a longo prazo do medicamento e nem se a eficácia pode ser reproduzida em larga escala.

O processo de testes é longo e angustiante, ainda assim necessário. A história prova que pular etapas pode causar um número maior de mortes que o número remediado. Vale dizer que outros remédios também estão sendo testados; a cloroquina apenas acontece de ser o mais popular, por algumas boas razões e outras nem tanto.

A realidade é que uma solução milagrosa não existe, ela é complexa e não tem prazo. É consenso que mais pesquisas precisam ser conduzidas para que se saiba exatamente como reagem os paciente tratados com a cloroquina. Até lá a testagem em massa de possíveis doentes e o isolamento social são as únicas maneiras que se conhece de evitar mortes com certeza.

Dito tudo isto, a prescrição do medicamento no Brasil não é proibida. O próprio Ministro da Saúde afirmou que “Se ele (médico) se responsabilizar individualmente, não tem óbice nenhum”. O medicamento é ativamente recomendado em casos graves e moderados. Não há empecilho nenhum, na prática. O Estado apenas não tem como política pública oficial o uso do medicamento em pacientes assintomáticos e em estado leve.

De volta ao Presidente. Todos que estudaram matemática sabem que de nada adianta acertar o resultado de um problema e errar a conta; então o Presidente continuará errado, mesmo que, como todos desejam, seja provado que a cloroquina pode curar a Covid-19. O fato é que hoje não temos essa informação, portanto, a conclusão vem de uma premissa falha, de nada vale.

Por isto, quando se trata de ciência, um raciocínio coerente por trás de cada conclusão é exigido, de forma que seja sempre possível alcançar bons resultados, sem depender da sorte; sem apostar com vidas humanas.