Respirar pela paixão dos suicidas (ou: Pretentious bullshit)

Existe alguma citação, de alguém famoso, que diz que para viver é preciso abdicar de tudo aquilo que nos faz querer viver. Comer com moderação, amar mas não muito, evitar o abuso de drogas, recusar experiências muito perigosas. Quando se é jovem nada disso realmente importa, diz-se que o mundo nos pertence durante um breve suspiro. Seduz a noção de “viver a vida”. Lembro de O retrato de Dorian Gray. O personagem que dá título à obra é o exemplar perfeito de alguém que escolhe viver ao máximo do que é capaz. Começa com Basil fazendo uma pintura de Dorian e termina com Dorian matando o artista que lhe eternizou na tinta. Teve que fazê-lo, tornou-se uma pessoa horrível, das mais vis, precisava matar alguém como os amantes precisam concretizar seu amor. Teve, porém, enquanto viveu, “a vida e a infinita curiosidade (…). Mocidade eterna, infinita paixão, prazeres sutis e secretos, loucas alegrias e desenfreados prazeres.” Em troca, o peso da vergonha manchou seu retrato, que Dorian manteve escondido. Depois, com a mesma adaga que perfurou o amigo, apunhala seu próprio retrato, que é sua alma. Um grito. Um baque. Morre. 

Não sei bem se há para onde ir daqui. A questão está bem definida, não? Viver uma vida que maximize os prazeres imediatos leva à decomposição moral, inevitavelmente. A curto prazo, os frutos podem ser avermelhados como a maçã que Eva prova, deliciosos, mas depois se colhe a vergonha eterna. Desenvolver esta ideia foi o que motivou este ensaio. Agora parece pouco.

“Me faça sumir nos anéis de fumaça da minha mente/ Pelas embaçadas ruínas do tempo,/ (…) chegando à praia onde venta/ Bem longe dos braços contorcidos da dor alucinada/ Sim, dançar sob o céu diamante com uma mão livre que acena/ Em silhueta contra o mar, circundada pelas areias do circo/ Com toda a memória e o destino levados bem pro fundo das ondas/ Me deixe esquecer de hoje até amanhã.” A letra de Bob Dylan sempre permeia minhas ideias e não sei o que me faz crer que se encaixa aqui. O verso final, “me deixe esquecer de hoje até amanhã”, soa especialmente pertinente. A música, a letra, tem algo a ver com drogas, ou arte, estar entorpecido de forma geral, sobre encontrar algum espaço para respirar longe dos ares abafados da vida real, longe da “dor alucinada”. Noutro momento Dylan nota também que isto, que se persegue, é só uma “sombra”, não é tangível.

Uns versos famosos de Manuel Bandeira: “Amor – chama, e, depois, fumaça…/ Medita no que vais fazer/ O fumo vem, a chama passa…” No começo eu achava que o poema era sobre cautela. Descreve a delícia do amar, os prazeres, o gozo: “Gozo cruel, ventura escassa.” Alerta que se a paixão começa, e é boa, só pode acabar, sem outro caminho senão queimar o pobre que se deixa consumir pelo impulso. Depois de seguir o desejo há a ressaca. Por qualquer motivo, desatenção, nunca havia percebido que nos últimos versos do poema Bandeira se repete de um jeito diferente: “Tão triste que é! Mas tem de ser…/ Amor? – chama, e, depois, fumaça.” O tom é outro, há um chamado. “Amor?” Como quem fala com alguém querido, clamando por ele com o questionamento, como dizendo “Amor?, onde você está? Vem cá”. E enfim continuasse: “chama, depois fumaça, tudo bem, vale a pena”, acho que ele deixa que fumaça seja um verbo em lugar de substantivo.

Quando assisto Sociedade dos poetas mortos, costumo pensar no professor John Keating como a simbiose perfeita do pragmatismo com o idealismo, do estoico com o hedônico. Talvez pendendo mais para o lado de cá, já que acaba tropeçando e sendo demitido por subestimar sua influência, mas não importa. O que ele ensina é sentir o prazer das coisas, da vida, aproveitá-la. Os dois personagens mais interessantes são, de longe, os que levam mais adiante a proposta do professor, os que, em lugar de encontrarem nos seus sonhos e desejos um alívio para a vida, encontram nas suas realidades limitações ao quimérico, e não se satisfazem. São extravagantes, vão longe demais. Charlie, é o rebelde sagaz, não leva nada a sério senão o carpe diem. Tem uma cena em que lê Thoreau e se sintetiza: “Fui para os bosques viver de livre vontade. Para sugar todo o tutano da vida. Para aniquilar tudo o que não era vida e para, quando morrer, não descobrir que não vivi!” Charlie acaba expulso da escola, os motivos são nobres, mas não importam. O outro de quem falo é Neil, o suicida. Sonha em ser ator, mas o pai não o deixa, é estrito. Para Neil, claro, o clímax, o ponto alto do filme, a cena principal, que justifica tudo. Engatilha o revólver, ouvimos o estouro. Bam! Bandeira tem um poema, sobre como queria que fosse seu último poema: “Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume/ A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos/ A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.” É como se todos eles convergissem para a morte.

Que não se pense que estou advogando pelo suicídio com estas palavras. Digo — não estou advogando coisa nenhuma, quem quiser que faça o que achar melhor, que cada um estrague a própria vida como queira. Estou romantizando essas ideias tanto quanto penso que merecem ser romantizadas, só que é bom ter em mente que tudo aqui é sombra inefável, que não se pode — ou talvez não se deva — tocar senão em ideia. Tocar a sombra é como tocar o sol, fazer como Ícaro, que ganha asas do seu pai, que lhe recomenda que fique longe do sol e longe do mar, ambos impostores. Teimoso, não escuta, voa perto demais do primeiro; as asas derretem, ele cai. Novamente a morte. Mas, sabe, mesmo que ninguém tenha visto, dizem que Ícaro naquele seu último instante brilhou tanto que a silhueta do sol quase podia ser alcançada lá de baixo.

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