Acessórios importantes são os óculos

Ontem fui ao médico, ao oftalmologista. Disse-me que terei de usar óculos – um tal de astigmatismo me aflige. Sempre precisei usar óculos; não devido à enfermidade, esta nunca notei, mas sempre os achei esteticamente agradáveis. Sempre penso que rostos precisam de algum tipo de proteção, talvez decoração, para não se exporem demais aos rostos dos outros. No meu caso, tenho a tendência de deixar os cabelos crescerem e cobrirem um pouco de minha testa e meus ouvidos. A higiene exige que eu corte vez ou outra os cabelos; e o dinheiro exige que eu os deixe bem curtos. Não tem momento em que me sinta mais nu.

O grau é baixo, 1 em um olho, menos ainda no outro. Como já disse, nunca notei o astigmatismo. Acontece que, quando pequeno, nas vezes que tinha que ler livros do colégio, não o fazia. Sempre fingi ler. Minha mãe notou e também uma professora que tive, ambas faziam alusões à coisa -“tem aluno que senta uma hora com o livro na frente e não lê, só finge.” Diziam isto com um olhar oblíquo dirigido a mim, ao que eu respondia com a maior desfaçatez, desfaçatez de criança. Vai ver vêm daí os cabelos longos.

Recentemente, tenho lido mais. Não o suficiente para notar o grau pequenino, mas leio um pouco mais. Assim como rostos precisam de máscaras — penso que é mais bonito falar máscara, dá um sentido mais poético à coisa do que proteção –, precisam também de uma expressões extras, as quais penso serem obtíveis através dos livros. Os de ficção, mais especificamente. Enfim, leio mais, mas não o suficiente. Não sei se ainda hoje poderia enganar minha sagaz professora. Minha mãe tem o prejuízo de ser minha mãe; creio que seria mais fácil no caso dela.

Os óculos. Pois é, estou desesperado. Ficarei mais bonito, pelo menos olhando-me ao espelho, mas incomoda-me o fato de nunca ter notado a falta de óculos. O que mais não notamos? Quando olhamos as belas rosáceas de igrejas antigas e sua arquitetura vemos o que alí está ou atendemos aos caprichos da mente? São perguntas extritamente retóricas, claro que não há resposta. Fingimos que todos olhamos as mesmas rosáceas, a mesma mármore, os mesmos rostos.

Figura democrática são os óculos. Havemos de ser justos com eles – não importa se o que entendemos de ótica é ou não correto, se o que vemos é ou não verdadeiro. Com os óculos, ou todos vêem corretamente, ou ficam todos cegos de vez. Mas cegos juntos, sem privilégio para os que mais enxergam que outros. Os sabidos, que aos olhos nada foge, são postos no mesmo canto dos estúpidos.

Mas tem também o colírio, o colírio, não! Absolutamente me recuso a aceitar que aquela gotinha miserável tenha alguma utilidade. Onde já se viu: colocar um negócio daqueles no olho para que? Para combater o olho seco? Isto não se corrige com colírio, afirmo aqui que não! Quem quiser que me processe, mas defenderei perante o júri: o olho seco não tem solução. Contra ele inventaram o teatro, a música, a literatura e a poesia. Dão jeito para alguns; mas o colírio, ah!, esse, não.

Fui eu quem fiz a médica me receitar o diabinho do colírio. Estava eu no consultório relaxado, ainda antes de receber a derradeira recomendação, explicando meus problemas à doutora. -“Tenho uma secura nos olhos, especialmente à noite. Se fecho os olhos, a irritação melhora um pouco, mas não dá para passar a noite toda assim.” Ela concordou com a cabeça, mas sem comentário. Partimos ao exame. Fiz tudo o que ela mandou. Terminado o processo, foi aí que ela disse. –“Você tem um grau bem pequeno, mas recomendo que use óculos.” -“Por ser pequeno, preciso mesmo?” -“Eu recomendo, você não tem nada a perder.” Concordei.

Até este ponto, muito bem, meu prazer estético logo estaria satisfeito. Foi quando começou o pesadelo. –“E o olho seco? o que faço?” Fosse mais inteligente, tivesse lido mais, talvez soubesse que não deveria ter trazido novamente à tona a questao. Mas, como disse, não leio o suficiente. –“Bom, eu vou lhe passar um colírio, então… você usa ele três vezes por dia.” Lembro pouco depois daí. Fui para casa.

Para falar a verdade, comprei o colírio no caminho de volta. Sabe, é que a gente tenta de tudo. Não menti quando disse que defenderia minha tese sob juramento; digo mais, seria causa ganha. Só que… na prática a teoria é outra.

Eu dizia como deixava meus cabelos crescerem. Não lembro bem quando a prática começou, nem como racionalizei a coisa. Hoje sei que foi a falta dos óculos, mas na época ainda não. Certa vez, minha mãe me forçou a cortar os cabelos, estavam grandes demais, dizia. Não mentia. Mais tarde soube que a iniciativa não partira dela, mas de uma professora minha, diferente da já mencionada.

Meus cabelos eram cortados. Eram cortados à maneira que Natalie Portman tem a cabeça raspado em V de Vingança. Conhecesse a cena na época, sei que me reconheceria alí. Chorei. Era um choro de ódio. Meus cabelos eram meus óculos. O mundo ficava mais belo, mais nítido, e tenho astigmatismo. Durante o corte inteiro aquela mulher — lembro nitidamente de seu rosto, tinha cabelos como de antagonistas de novela — tinha a mesma expressão que tem um assassino quando goza em ver sua vítima morrendo em agonia. Ela não sorria, o que era pior. Eu não podia acusá-la de dolo sem que sorrisse. Ela sabia disso. Mas, se a boca era astuta, seus olhos a entregavam. Mesmo sem cabelos, óculos e sendo astigmático enxergava por trás daquele disfarce.

Daí em diante, sempre que me dizem que meus cabelos estão longos, faço questão de deixar que cresçam um pouco mais. É uma ferramenta de defesa, pelo menos acho que é. O oposto também acontece. Já tive os cabelos elogiados. Sempre que isto acontece trato de cortá-los. Nu ou não, corto bem curtos. Opto geralmente por profissionais homens. O rosto da vilã aparece para mim no rosto de toda mulher do ramo. Deve ser trauma, ou sei lá o que. Já ia esquecendo do colírio: não funcionou. Meu olhos continuam secos à noite.

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